domingo, 20 de janeiro de 2008

Frau Mattner



O amor, a guerra, biscoitos amanteigados e sorrisos de paz...

Assim foi com Frau Mattner em uma tarde de domingo. Dou graças a vida que tenho. Por estar em Berlin e ouvir as estórias da guerra na percepção dos comentários regados de “bombs”, lembranças sedimentadas em olhares vagos, porém não tristes, de uma mulher, criança de 1939.

Quando pensei em me encontrar com alguém que já tinha consciência no período da bestialidade humana, do Hitler existente no egoísmo que nos permeia, fiz em minha própria mente a idéia de preconceito ou de discursos amargos.

Frau Mattner fez de minha tarde algo inesquecível. E de histórias que não esqueceremos jamais, a vida não nos proporciona assim tão facilmente. Estando perto dela, uma pele boa, tem se a realidade. Viver é melhor que sonhar. Hoje vivo, ontem sonhava.

Ela contava, de olhar cabisbaixo - porque quando nos lembra a violência de batalhas sangrentas os olhares se tornam assim, vagos. Teve que se separar dos pais, foi à República Tcheca, onde estaria segura. Segura de que longe de seus pais teria mais chance de se tornar uma mãe, como a dela, tão doce, que lhe chamava carinhosamente de “ratinho”. A vida não quis que se tornasse mãe.

A solidão de um asilo não é necessariamente o óbvio da tristeza do abandono. Frau Mattner, mesmo tendo enterrado marido e pais, e sem filhos, ainda permanece doce sobre a vida, não se queixa. Quer que comamos os biscoitinhos que nos oferta, serve- nos um pouco de água com gás. Esquece o tempo todo das coisas que fala. Para ela, o tempo já não se conta mais do nosso jeito. O tempo passa do jeito de Frau Mattner e seu olhar doce refletido por intensos olhos azuis.

Vamos passear um pouco.Um outro interno, de cadeira de rodas, em alemão pede alguma coisa, eu não entendo. Eu não falo alemão. Frau Mattner solícita o carrega, com fibra, empurrando a cadeira de rodas até o quarto, se despede com o costumeiro sorriso que aprendo está sempre a iluminar- lhe a face.

Adoro os idosos. Gosto das historias. As vezes irrita quando repetem a mesma história. Uma peça que o cérebro nos prega quando já se sente gasto. Frau Mattner, uma alemã que nada sabe sobre o Brasil, me recebeu muito bem no seu canto, onde guarda sobre os móveis que trouxe do antigo apartamento, as fotos dos que lhe são queridos e não lhe saem dos comentários, histórias e lembranças. Também me permite acariciar seus bichos de pelúcia com quem mantém saudáveis diálogos e manifestações de amor.

As fotos recuperam a identidade dos pais e do marido que já existiram, mas agora não existem mais. Frau Mattner existe, e existindo nos da a oportunidade de encher o nosso coração de conforto porque dando, estamos recebendo.

Como não agradecer tão rica experiência? Ainda soam em meus pensamentos suaves “ ya, ya” que complementam cada comentário. Suave comiseração por sua própria alma. Noção dos próprios limites. Uma pontinha de saudades dos velhos tempos.
Frau Mattner foi uma parte da Alemanha para mim. Um símbolo do seu próprio povo. Uma relíquia que a vida proporciona aos que tem olhos de ver. E quem tem que veja. Só tenho a agradecer. Uma boa tarde assim para todos.
A visita ao asilo foi traduzida pela grande amiga alemã Franziska, que fala um excelente português.

Um comentário:

Fran disse...

realmente sua experiência foi muito rica e inesquecível. que bom que vc viveu uma experiência como esta. coisas assim nos fazem crescer. o triste, no entanto, é ver que atrocidades continuam a ser feitas no mundo. no passado, entre tantas outras histórias, teve os campos de concentração. hoje o campo de concentração fica na colômbia com mais de 800 prisioneiros das FARC.
realmente, as atrocidades e as tristezas se repetem.